Abyssus abyssum invocat

Talvez o ponto máximo dessa criação seja justamente o entendimento que para uma vida plena basta apenas aceitar que uma vida já é o suficiente.

Abyssus abyssum invocat Abyssus abyssum invocat

Profissão de fé

O peso do crucificado é a medida do sofrimento por todos os seus pecados. Sentia o mundo se distanciar a cada conta rezada pelos seus. Pesava ele cerca de trinta talentos: o peso de Judas.

Profissão de fé Profissão de fé

Três ceguinhas

Escuridão: escuro do escuro do escuro. Preto no preto no preto da etrinidade das turvasnegras seispupilas ocas pareadas para sempre. A pessoa é para aquilo que nasce.

Três ceguinhas Três ceguinhas

ένδοξο θάνατο

Como gados aguardando o momento inclemente do abate estancamos no tempo, talvez esta seja a hora das nossas vidas, o ápice de nossos destinos mortais...

ένδοξο θάνατο ένδοξο θάνατο

Glamour

Da perdição da menina-moça ao claustro vazio da puta-velha, apenas a aceitação de um destino dominus.

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17 de outubro de 2009

ένδοξο θάνατο


(...) metal, couro e fedor me tomam agora: elmos negros forjados num antanho desprezo escaldante de  infernais fornos desumanos escondem rostos moribundos de corpos franzinos travestidos em couraças de vacas mortas, como mortalhas necessárias à vindoura cerimônia,  em meio ao suor asqueroso e viscoso de uma apinhada imundície humana desesperadamente atordoada. Como gados aguardando o momento inclemente do abate estancamos no tempo, talvez esta seja a hora das nossas vidas, o ápice de nossos destinos mortais, a etérea calmaria que precede às tempestades do vingativo e calamitoso Poseidon. Sol, calor e horror cozinham-me as carnes e as idéias. O que me trouxe até aqui?



A primavera perdida com a minha família; que Demeter tenha piedade dos meus, pois os coitados não têm culpa dos desígnios mesquinhos de Zeus com Hades, de a pobre Perséfone descansar no inferno quando deveria frutificar junto aos seus. Por acaso tenho culpa também das vaidades de nosso rei? Dia desses o vi trôpego de vinho se arrastando em direção à tenda de suas escravas, parecia-me muito gordo, pequeno e velho para ser um dos filhos do poderoso Zeus - ou não entendo de deuses, ou não entendo de homens! Dias desses até comi de verdade, ainda retenho na lembrança o gosto daquela ave e daquele vinho. Ainda saboreio a generosidade de Baco quando saqueamos a última cidade e, nas comemorações que se seguiram, eu e o grandalhão de Cronos achamos aquelas virgens escondidas sob o assoalho do templo do palácio. Como lobos inebriados por suas carnes nos satisfizemos a noite toda, em meio ao suor, às lágrimas e aos sangues delas. Uma a uma transpassamos com nossas lanças carnais afiadas, profanando tudo o que encontrávamos até sermos, tempos depois, encontrados e postos novamente, sob chibatadas e pauladas, nas fileiras marchantes do exército de partida. Onde está o grandalhão que não consigo mais vê-lo daqui? Nem consigo mais me mexer: comprimido como uma fruta a expelir seu sumo mais íntimo, mal consigo respirar em meio aos escudos, lanças e corpos, com minha couraça e meu elmo a sufocar-me. Há muito meu destro braço está dormente porquanto da maldita pesada lança que ostento aos céus, ou será que aos abutres rodopiantes sobre nós a espera dos despojos viscerais da batalha em breve? Maldito o destino que me conspirou até aqui! Não gosto de estar no centro da falange, a ser espremido pelos que empurram de trás e espetado pela falange adversária que chega pela frente. Gritos, finalmente começou!?! Respire, respire, resp... Ahhhh! Marche, marche... marche, ordenam os comandantes. Merda de aperto: pisam na porra dos meus pés como se fossem nas cabeças das malditas mães desses filhos-da-puta! Bosta! Não consigo descer a porra da lança ainda, merda! Piso em gente, droga! Tenho que ficar de pé, não posso tropeçar ou logo estarão pisando em mim também! Vejo muito pouco com esse elmo de corno, mas melhor não tirá-lo ou ficarei sem cabeça. Estão atirando pedras e flechas aos montes. Já estamos ao alcance deles... e nossos arqueiros, onde estão? Não vejo a cavalaria em nosso flanco, estamos indefesos no flanco direito, será que ainda não perceberam?!? Maldita pedrada, se eu tivesse sem o elmo estaria agora catando meus miolos! Lá vêm as lanças deles, estão passando por cima de nossa falange, merda! Lá vem, para trás não dá para ir, empurram a gente de encontro a esse atroz abatedouro. Uma ponta está roçando meu elmo, outra arranha meu dorso, tem uma coisa me cortando por baixo, droga! Parem de me empurrar se não caio! Minha lança ficou presa, preciso desembainhar a minha espada e levantar mais o escudo que logo-logo estarei na frente da falange, nesse morticínio sem-fim a ceifar a todos. Ai! Tem uma ponta entrando em meu ventre, não consigo descer o escudo, dói muito, minhas vísceras ardem num frio de metal. Dói, dói...dói...  Bosta de pancada foi essa agora? Cadê meu elmo...onde caiu? Quero ir embora agora...por que não vou? Ai, ai... Dói muiiiito... Eu, eu...horror, o horrrror!


*   Texto de Roberto W.
** O título ένδοξο θάνατο, em grego, é claro, significa morte gloriosa, em português.

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